1
“Ultrapassam em barbarismo tudo o quanto se pode imaginar (...). Ignoram o uso da charrua, das habitações sedentárias (...). Sua vestimenta consiste numa túnica de linho e numa casaca de peles de rato cosidas; um capacete ou um barrete lançado para trás e peles de bode enroladas nas pernas peludas completam seu equipamento. Seu calçado, cortado sem forma nem medida, não lhes permite marchar. Por isso são incapazes de combater como infantes. Uma vez na sela, porém, parecem estar pregados no dorso de seus cavalinhos feios, mas infatigáveis e rápidos como raio. Nada iguala sua destreza no disparo, a distâncias prodigiosas, das flechas dotadas de ossos pontiagudos como o ferro. Têm os rostos deformados por cicatrizes, dorsos curvos. Parecem animais sobre suas patas.”
Amiano Marcelino (~330 – ~395)
Dácia. 453 AD.
A capital dos hunos não era uma cidade, mas um vasto campo situado entre o rio Danúbio, o rio Teiss e os Cárpatos. A cidade de Naissus, completamente destruída, marcava a fronteira entre o domínio huno e o domínio romano. Aquela fora a única exigência do Khan, quando assinou a paz com seus inimigos no ano anterior: a posse das terras ao sul do Danúbio, um território cujas delimitações eram de cinco dias de marcha.
Próximo às barracas dos guerreiros, junto às termas levantadas com rochas trazidas das planícies da Hungria, erguia-se o palácio circundado por uma paliçada de tábuas polidas. Anoitecia. Não havia soldados por perto e o menino procurava quase em vão por uma brecha entre as cercas fincadas na terra. Uma vez lá dentro, encontraria seu caminho até a presença do monarca. Tudo de que precisava era conseguir alguns minutos diante dele. Só isso. A fome, a sede e o cansaço não eram suficientes para fazê-lo parar. Há três dias caminhava sem trégua. Estava exausto. Faminto. Mas não podia desistir.
Percebendo uma pequena fenda entre duas cercas, o fedelho deixou o corpo escorregar e rastejou como um ladrão para dentro da fortaleza. Teve ainda chance de lançar um breve olhar para o homem pardo e baixo, de corpo truculento, olhos fundos e estreitos, trajando apenas um manto de linho bege sob peles de urso. Então a fisgada na coxa esquerda... Dentes! Rasgaram a pele fina quase até lhe atingirem os ossos, e a dor e o susto foram tamanhos que ele sequer gritou. Engoliu o ar num soluço e, no instante seguinte, escuridão...
Não sabia dizer por quanto tempo dormiu. A perna latejava. Uma dor lancinante que ele fazia força para esconder. Seu ferimento fora cuidadosamente tratado, e seu corpo estava estendido sobre uma esteira. As almofadas às suas costas proviam-lhe de um conforto que ele jamais conhecera. Havia um cheiro adocicado no aposento. Um aroma que, de uma forma que ele desconhecia, lhe trazia conforto. Os olhos pesavam como rochas. Ergueu as pálpebras com profundo esforço. A visão, ainda turva, revelou o rosto austero daquele mesmo homem que o abordou do lado de fora do palácio. O menino suspirou. O medo de repente sobrepujou a dor causada pelo ferimento. “Agora, sim. Estou morto.”, ele pensou consigo ao ouvir a voz daquele a quem, como lhe dissera a mãe já morta, devia chamar de pai.
– Quem és?
O menino franziu o cenho. Morreria com dignidade.
– Teu filho. – respondeu, devolvendo ao homem o mesmo ríspido olhar que este lhe dirigia.
– Tenho filhos por todo mundo. Tenho mais filhos do que homens em meus exércitos. Todos bastardos.
– Mas ainda filhos.
A resposta do menino causou alguma estranheza naquele homem. Por certo já havia reconhecido naquela criança seus próprios olhos, seus traços, mas, de repente, reconhecera também, nela, suas palavras, sua própria arrogância. Sorriu.
– O que queres aqui?
– Venho a pedido de minha mãe. Ela me disse que te procurasse se ela faltasse para mim. Tenho nove anos e mais ninguém nessa vida. Meu irmão e minha mãe estão mortos. Não venho por teu amor, tuas riquezas ou teu abrigo. Quero um trabalho.
O guerreiro ensaiou um sorriso e olhou para o lado, na direção de seu guardião. Os olhos do menino de repente foram tomados de pânico ao ver a aproximação daquele que, certamente, era o responsável pelo ferimento cuja cicatriz carregaria pelo resto da vida. Um lobo. Branco. Enorme. Maior do que qualquer lobo que ele jamais houvera visto...
– Karr poupou tua cabeça porque sentiu em tuas veias o gosto de meu sangue, fedelho!
O menino engoliu em seco. O lobo o estudava. Erguia o focinho mostrando as presas como que se estivesse faminto. Uma enorme jóia pendia em seu pescoço. Uma jóia semelhante pendia também no pescoço de seu pai. Havia um estranho símbolo talhado em ambas. O lobo percebeu o olhar curioso do garoto sobre seu medalhão e se adiantou mais um passo de maneira ameaçadora. De repente, o menino sentiu que ia sufocar...
– Tu és o senhor do mundo! – disse, tentando controlar o impulso trêmulo em sua voz. – E governar o mundo exige trabalho. Deve haver algum trabalho em teu mundo para mim, meu pai. – os olhos altivos do lobo não o deixavam. Era inquietante. O homem suspirou enquanto o animal voltou as presas na direção de seu mestre e rosnou.
– Karr está me dizendo que há três dias vens nos espreitando...
O menino o olhou de lado, incrédulo.
– Podes ouvir a voz do lobo? – perguntou de súbito.
O guerreiro curvou seu corpo sobre o menino, aproximando os lábios de seu rosto. – Posso ouvir a voz de todas as feras... – sussurrou-lhe ao ouvido.
– Ensina-me! – gritou o garoto de sobressalto.
O lobo ergueu o focinho mais uma vez, deixando agora escapar um longo e sonoro rosnado.
– Por que ele ri das minhas palavras? – perguntou o menino.
O guerreiro lançou um rápido olhar para seu guardião e voltou a fitar o garoto.
– Então sabes que Karr estava a rir de ti? – indagou, se divertindo com a presunção do menino. – Já não tens mais nada a aprender comigo, fedelho!
Outra fisgada. Dessa vez o garoto não conseguiu esconder o espasmo de dor.
– Não sei se admiro tua coragem ou se repudio tua estupidez... – a voz do monarca de repente lhe soou terna, quase paternal.
– Só quero um trabalho. – voltou a repetir. – Dá-me um trabalho e nunca mais hei de te molestar, meu pai.
– E que tipo de trabalho tu procuras?
O menino ergueu os olhos.
– O tipo que faz de bastardos como eu, homens como tu, meu pai. – disse com firmeza e solenidade. O guerreiro fitou o garoto nos olhos profundamente, apertando entre os dedos o medalhão.
– Vou deixar recuperar-te de teus ferimentos sob meu abrigo. Até lá vou pensar sobre o que tu podes fazer para mim.
– Sim, meu pai.
Então caminhou até porta do aposento e voltou-se uma última vez na direção do rebento.
– Como é teu nome? – perguntou.
– Anatole.
– Não me chames de pai outra vez, Anatole, porque não reconheço filhos que não sejam legítimos. – disse-lhe numa calma tão inquietante que chegou a lhe causar medo.
– E como devo chamar-te, meu senhor?
– Por meu nome.
O menino baixou a cabeça, encabulado.
– Sim. Átila.
2
Levou quase um mês para que Anatole se recuperasse por completo daquele ferimento. Não poderia ser diferente, dado que o menino insistia em correr para cima e para baixo, por todo acampamento, negligenciando todas as recomendações feitas pelos médicos. Os pontos estouravam a cada três dias, que lhe custavam mais dois de repouso absoluto, para novamente o menino voltar a tripudiar. Desde a noite do encontro com seu pai, Anatole jamais vira o monarca novamente. Fora colocado numa tenda do outro lado do acampamento, próxima ao campo de treinamento dos arqueiros. Quando não estava repousando em vista do ferimento aberto, ocupava-se dos animais e da observação do treinamento dos soldados. Aqueles homens pareciam ter nascido sobre o cavalo. Eram um com eles. Montavam de maneira incomum. Os pés cravados no estribo e os braços ocupados tão somente do arco e flechas. Os animais também eram diferentes. Menores e mais troncudos do que aqueles que ele estava acostumado a ver. “São mais velozes e resistentes do que a montaria romana.”, explicou-lhe um jovem arqueiro.
– Mas tens dos outros cavalos também.
– Uns poucos dos quais não gostamos... Outros, que não gostam de nós... – o arqueiro apontou para o pasto além do acampamento. – Vês aquele ali?
Anatole olhou na direção mostrada pelo arqueiro e sorriu. O animal era negro como a meia-noite, a crina longa, os pêlos brilhantes... Jamais vira um cavalo tão belo. – Veio de muito longe. – disse-lhe o jovem arqueiro. – Mas não serve para nada, o maldito. Não gosta de trabalhar e ninguém consegue montá-lo...
Os olhos de Anatole se encheram de desejo.
– E por que tu o manténs aqui? Por que não o deixas ir, ou vais sem ele? – perguntou.
– Foi um presente. Um presente que teu pai ganhou ainda criança.
– E o bicho não envelheceu?! – perguntou o garoto espantado.
– Por isso o nome dele...
Anatole sorriu sua curiosidade de tal maneira que o arqueiro não hesitou em responder-lhe...
“Século!”, o garoto repetia incessantemente em pensamento. “Mas que belo nome para um cavalo! Século!” Passava agora dias e noites pensando sobre o animal. Vez por outra arriscava uma aproximação. Cestos e cestos de cenouras frescas conseguidas por seu novo amigo, o arqueiro. Horas e horas a lhe escovar a crina e os pêlos, em pé sobre a banqueta dado que mal podia alcançar a barriga do animal, que dirá seu dorso! Estava tão ocupado em cortejar o bicho que sequer percebia os olhos sempre presentes de Karr a lhe observar os passos de longe.
Detalhe por detalhe, o lobo reportava tudo a seu mestre, cujo interesse crescente pelo menino começava a levantar suspeita por parte de seus conselheiros...
– Um bastardo?
“Mas ainda filho!”.
A frase veio à ponta da língua, mas o monarca não precisava dizê-la. Bastou-lhe apenas lembrá-la. Repeti-la para si em pensamento.
– Queres ter a cabeça decepada? Desde quando te dei permissão para falares desta maneira comigo?
Essa era sempre a resposta sábia. Nenhuma outra.
– Perdão, meu senhor. É que os presságios...
– Os presságios... Ah, os presságios! Tu e os malditos presságios! Disseste não há muito que os ventos trariam más notícias e sabes o que me trouxeram os ventos? Este menino! Cansei-me de teus presságios! Aliás, cansei-me de tua arrogância! Vou mandar que te cortem a cabeça e vou pedir que me sirvam de tuas vísceras porque, talvez delas, ao comer, eu possa herdar teus dons videntes e finalmente entender como a tua escassa inteligência conseguiu por tanto tempo atormentar meu gênio!
O homem caiu de joelhos.
– Corta minha língua, então, senhor do mundo, mas deixa minha cabeça onde está!
– Vai! Vai-te daqui!
O homem saiu com passos tão apressados e tropeços, que arrancaram do monarca um sorriso doentio e cruel. Karr se aproximou dele e roçou a cabeça em sua perna.
– Tu crês que devo enviar o menino a eles, não é, meu guardião? – perguntou ao lobo.
“Eles ainda aguardam um herdeiro teu...”, escutou em sua mente a voz solene de Karr... “Um herdeiro digno de teu nome.”
O monarca sorriu para si mesmo.
– Anatole... “O Nascer do Sol”... Uma grata coincidência o nome dele, não achas? – perguntou, voltando o rosto para a noite lá fora.
O guardião elevou seus olhos ao monarca e mostrou as presas como que sorrisse... “Coincidências não existem, meu Khan. Tempo dotado de vontade.” – disse-lhe em pensamento. – “Tempo dotado de vontade.”
3
– Tenho um trabalho para ti, bastardo!
O menino, que ainda dormia, acordou de sobressalto, levantou-se numa fração de tempo para, em seguida, colocar-se de joelhos diante do monarca e seu guardião. Tentava esconder o medo que ainda sentia daquela fera e se perguntava se esta podia ouvir às sonoras ribombadas de seu coração apavorado.
– Sim, senhor.
– Tua perna?
– Curada, meu senhor.
– Podes montar? – perguntou, percebendo que os curativos feitos por seus médicos estavam em precária situação e que o menino fazia algum esforço para manter o equilíbrio. Mesmo assim, não disse coisa alguma a respeito.
– Sim, meu senhor.
O monarca bateu as palmas das mãos à frente, olhou brevemente para Karr e sorriu.
– Excelente. Tu partes em vinte dias. – e deu as costas ao menino, caminhando para fora da tenda. Anatole ergueu-se confuso e apressou os passos tentando alcançar seu pai.
– Senhor? – gritou à distância. – Senhor! Não me disseste do que o trabalho se trata!
O monarca cessou os passos e voltou-se para o menino.
– É verdade! Mas que grande falta a minha, Karr! – completou. – Devemos dizer a Anatole sobre a natureza de seu trabalho ou tu achas mais interessante fazê-lo esperar vinte dias?
Karr acenou com a cabeça e arregalou as presas na direção de Anatole.
– Hmm... Meu guardião acha que devo dizer-te agora. Mas eu acho que tu deves esperar vinte dias... E acho que deves esperá-los dentro de tua tenda. Deitado em tua esteira.
Anatole sentiu uma vontade louca de perguntar por que, mas decidiu conter-se. Questionar a decisão de seu pai seria como questionar sua vontade de continuar vivo! Já tinha ido longe demais com sua curiosidade e ousadia ao persegui-lo pelo acampamento daquela maneira. Não disse nada. Ajoelhou-se. O movimento fez com que, mais uma vez, seus pontos já quase soltos, estourassem. O ferimento começou a sangrar e doer. Anatole não esboçou qualquer reação, tampouco o monarca.
– Agora, volta para tua tenda, deita-te e não te levanta por vinte dias, Anatole, quando então voltarei para dizer-te sobre teu trabalho. – ordenou-lhe o pai.
O menino se ergueu, curvou-se em reverência, deu três passos desengonçados para trás e só então se virou para caminhar de volta à tenda. Mancava. A dor na coxa latejava em sua cabeça. Deitou-se sobre a esteira e não conseguiu deter as lágrimas. “Karr, seu maldito!”, pensava consigo. Pouco após, seu amigo arqueiro entrou trazendo um pote com água e ervas, uma agulha e fios de crina de cavalo. Anatole já sabia para quê... Suspirou profundamente e agradeceu em silêncio pela ordem dada por seu pai, compreendendo finalmente o motivo pelo qual fora colocado naquele castigo. Certamente, se permanecesse quieto por vinte dias, aquela ferida haveria de não mais sangrar.
4
“Morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará; e o bezerro, e o leão novo e o animal cevado viverão juntos; e um menino pequeno os conduzirá.”
Isaías 11:6
Seth deitou a carcaça negra sobre o arrecife ao pé da falésia à beira-mar e olhou para a lua do Inferno. Brilhava como se fosse a íris de um dos olhos de Deus. O pensamento arrancou de sua bocarra um discreto sorriso, e ele ousou perguntar a si mesmo para onde o outro olho de Deus estaria olhando... Estaria olhando para a terra? Para seus filhos? Por seus filhos? Estaria, o Senhor, observando seus feitos? Apostilando as virtudes e pecados de todo ser vivente para depois questioná-lo acerca de como usufruiu o tempo, a ele, ofertado? Gozavam todos os homens desta bênção? Qual era o alcance dos olhos de Deus? Será que Deus podia vê-lo? Será que a luz penetra tudo? Existiria algum lugar no espaço incapaz de receber a luz de Deus? Um lugar esquecido nos confins do universo físico, um lugar tão denso e concentrado em si mesmo, quanto aquele em que ora ele se encontrava?
Ah... Sua resposta. Presente na indagação. Sorriu.
Olhou para o mar negro de águas calmas que refletia em sua superfície o intenso luzir da Lua, como que se propusesse um caminho. Lembrava o brilho que pungia no caminhar daquela dama que há muito ele não via. A escuridão tinha a cor dos cabelos dela. E seu perfume jamais o deixou. Olhou para baixo, voltando a enorme cabeça na direção de seu próprio peito, como que se olhasse para seu coração; um coração que antes desconhecia o sentir e que agora doía. Doía como se alguém o rasgasse. Alguém cujo rosto ele não conseguia evitar, cujo perfume não lhe deixava as narinas. O cheiro da tez de sua pele delicada, daquelas mãos curativas que lhe tocaram a alma...
Morte...
Saudade. Sentia sua falta. Abriu os olhos e deixou que a imagem dela se dissipasse na vastidão, como cinzas que se espalham pelo ar. Lembranças de uma história impossível. Amaldiçoou o dia em que sua alma pura e virgem fora preenchida pelo ópio da Humanidade. Até aquele dia, ele nada sentia. E, ao nada sentir, não sofria. Desde então, contudo, tornara-se um prisioneiro. Um prisioneiro de si mesmo. Já não sabia dizer onde terminava o homem e começava o lobo, ou onde terminava o lobo e começava o homem... Um homem preso à carcaça de uma fera. Uma fera presa à consciência do eu.
Morte.
Sussurrou seu nome em silêncio, como que se orasse.
Em tempo, sua presença, por ela, seria convocada outra vez.
E ele ansiava por isso, pela oportunidade em revê-la.
Morte.
Seu perfume era tão inebriante quanto a própria liberdade.
Tão irreal e intangível quanto a própria liberdade.
Um devaneio de sua Humanidade. Uma ilusão.
Ilusão.
Olhou em volta. Para o deserto atrás de si. Lembrou-se de onde estava. Aquele lugar, o Inferno, o Abismo, era uma ilusão. A manifestação de uma idéia, da crença do homem acerca do caráter dual do criador. Uma idéia na qual o homem acreditava tão veementemente que a tornara real. Seth sabia daquilo, sabia das coisas, sabia de tudo. Confusão. Tanto em seu pensamento, indo e vindo desordenadamente. Seu peito lancinava a vida de uma natureza morta. Uma natureza que já não era mais sua. Queria apagar de sua memória o dia em que testemunhara aquele crime. O dia em que viera a conhecer aquele que, não muito depois, viria a misturar sua substância com a dele. A pedra sendo erguida por um irmão contra seu irmão. O golpe violento e certeiro. A voz de Deus a urrar por toda terra quando o sangue do pequeno lhe subiu às ventas... “Caim, o que fizeste?...”, indagou o Todo-Poderoso. Seus olhos testemunharam algo que Seth, então um lobo somente, não compreendia. Um crime. Que crime? O que era um crime, então? Não. Ele não compreendia. Não era um Guardião do Mito àquela época, era somente um lobo. Um animal faminto em busca de alguma carcaça esquecida no deserto. Mas os caminhos do Senhor são tão estranhos e de repente ele se viu diante daquela cena e seu testemunho não seria em vão.
Ah... Mas, assim como o cheiro do sangue subiu até as narinas de Deus, sua seiva fora engolida pela terra e desceu até as portas do Inferno. Pingou sobre a língua astuta do arcanjo abjurado e o fez sorrir... “Caim, o que fizeste!”, exclamou o Príncipe.
Naquela mesma noite, o anjo caçou o lobo e, ao encontrá-lo...
“Tenho uma oferta para ti.”, disse-lhe o matreiro.
“Quem és?”, perguntou-lhe a fera.
“Um arauto. De outrora...”
“O que queres comigo? Por que escuto a tua voz? Por que a compreendo?”
“Porque falo a todo ser vivente. Tu o podes também, se assim o desejar, lobo...”
Ingênuo. Como fora ingênuo. Aceitou a oferta do anjo. Pactuou com ele. Pactuou com Caim. Tornou-se Guardião dele, seu servo e protetor, em troca de conhecimento. Em troca de uma alma. E para quê? Para descobrir que um há que ser homem ou bicho, não as duas coisas. Para descobrir que o corpo é não apenas a morada do espírito, mas antes, sua prisão. Para descobrir que somente ao homem cabe o gozo sobre a compreensão da razão e da vida, porquanto fora no ouvido do Homem que Deus sussurrou Seu santo nome. Foi ao Homem que Deus revelou seus mistérios e o caminho para a compreensão destes. Criaturas de Deus, sim, todos o eram. Mas o Homem não era como as outras criaturas. Razão. Pensamento. Consciência. Deus escolhera o homem para Seu arauto. Sua santa voz podia ser ouvida na boca de todo ser vivente, mas fora na boca do Homem que esta encontrou sentido e significado. Fora por meio do Homem que sua vontade fora escrita. Revelada. Conhecida. Entendida? Talvez, não. Mas aquela era uma história que mal começara, um caminho longo a ser percorrido. Pelo homem. O homem é o alvo do Verbo. E Seth não era um homem. Tinha razão, pensamento e consciência, mas não era um homem.
E estava feito.
Seth era agora o pai de toda uma raça de seres como ele. Guardiões do Mito do Homem. Demônios lupinos dotados do alento humano cuja missão era única e exclusivamente servir e proteger os filhos de Caim, homens e eternos. Anjo astuto! Trouxe à terra a manifestação de sua inveja na pele daqueles lobos, daquelas aberrações! Daqueles demônios! Gerou com aquele pacto uma raça de escravos e assassinos. Contaminou ainda mais o que antes podia ser salvo com a Palavra somente...
E não havia nada que Seth pudesse fazer.
Não sozinho. Não ali. Não agora.
Sentou-se.
Curvou-se na direção da água tentando vislumbrar o próprio reflexo. Fitava seus olhos. Aquele brilho irreversivelmente humano estampado na cara de uma fera. Pensou mais uma vez sobre ela. Sua figura lhe trazia conforto. Seu abraço era um abrigo... Sentiu de repente como que se seu coração inchasse. Saudade. Angústia. Maldita. Maldita Humanidade. E num instante o plano divino, o pacto, o Céu, a terra e o Inferno voltaram em seus pensamentos...
Havia tanto, tanto a ser feito. A ser dito. A ser vivido.
Aqueles eram tempos tempestuosos, incertos.
Morte...
Onde estaria a senhora de seu coração? De sua humanidade?
Sim, ele acreditava que se havia uma razão para tudo aquilo, ela era esta razão. Deus havia colocado o diabo em seu caminho somente para que ele, Seth, pudesse vir a conhecê-la. Para que pudesse compreender a essência da vida ao ouvir seu caminhar de passos abençoados, que brotavam de solo morto à mais verde grama, à mais colorida flor.
Sentia-se tão só. Queria ouvir a voz dela mais uma vez. Vê-la mais uma vez. Deixar-se ver mais uma vez. Mas não ainda. Não ali. Não agora. Agora, tocavam as trombetas. Ao longe, o som das trombetas.
Cantavam seu nome, “Seth!” vociferavam.
Lúcifer o estava convocando.
Hora de deixar os devaneios para mais tarde...
Entrou sem ser anunciado.
O piso do salão sem paredes era frio como a inveja do anjo.
Lúcifer estava ao fundo, sentado sobre sua rocha, observando o queimar de uma árvore desfolhada ao fundo. À sua volta, circundando o imenso salão, as colunas que se perdiam dentro do céu. Mais além dele, o despenhadeiro.
Aquele lugar era como uma grande varanda para o mar negro do Abismo. Um salão no alto de um platô, de onde o arjo podia ver toda a vastidão de sua morada...
– Como vai o meu filósofo predileto?
Seth pôde sentir pelo tom de voz que Lúcifer sorria ao falar. Baixou a cabeça em reverência, sem lhe responder à pergunta.
“Meu Príncipe.”, falou-lhe ao pensamento.
– Pude ver daqui a maneira que olhavas para a Lua, Seth. O que foi? Queres voltar a uivar para ela? Justo agora que conheces as palavras? Que podes fazer poesia? Seria uma grande tolice...
“Como posso servir a ti?”, Seth perguntou secamente sem se deixar irritar com o sarcasmo do anjo.
– Quero saber de tua prole, Seth. Um entre os teus. Incomoda-me.
Seth olhou-o de lado. “Quem?”
– O oitavo.
“Azael...”, disse o lobo para si mesmo. Sorriu. “Certamente.”, respondeu, pensando consigo sobre o que o oitavo significava. Esforço, aflição e trabalho. A luta constante da busca pelo equilíbrio. O poder mediador entre a destruição e a conservação: a justiça!
Azael fora o oitavo Guardião do Mito criado a partir de Seth. Os Três Primeiros, como eram chamados Aspher, Trako e Yôneda, foram os lobos escolhidos por Seth, em sua alcatéia, para dar início à criação da Irmandade dos Guardiões do Mito. Seth os batizou com seu sangue e, a partir deles, todos os outros surgiram. Kai, Mouro, Drakei, Melleu e Azael. Nesta ordem. Azael sendo o último guardião gerado a partir de uma trindade. Todos os demais, a partir dele, um número infinito de Guardiões do Mito, seriam gerados pelo pentagrama formado por estes cinco últimos.
Azael... Inquieto, inquiridor, insatisfeito.
Seth sabia que ele só conseguiria encontrar alguma paz quando fosse enviado em missão, quando a inquietude de seu espírito haveria de se apaziguar diante do propósito único e exclusivo para o qual todos eles foram criados: servir. Sempre servir. Jamais questionar. Jamais sentir.
Voltou-se para Lúcifer.
“Azael é o oitavo, e é, com ele, todos os seus atributos.”
– Não gosto desses atributos. Devias ter com ele. Anda por demais contemplativo. Nem bem retornou de sua última missão e já está a meditar sobre razões existenciais...
“Forçá-lo a se calar só o levará a fazer mais perguntas, meu Príncipe. Deixa-o só para que se cale naturalmente. Quando voltar à terra, essas memórias serão apagadas em vista da natureza de nossa missão. O alento há de ser calado, sobrepujado pelo vazio que...”
– Ah! Filósofo Seth! Tu és um filósofo! – interrompeu o anjo abruptamente. – Crês que fiz à tua raça um mal ao silenciar o homem que habita a vossa alma? O que achas que trancafiei em vós? Algum herói? – perguntou austeramente. Ergueu o indicador, convicto. – Um monstro! É isso que vós todos tendes dentro de si, um monstro a espreitar-vos! A Humanidade é monstruosa! Devias me agradecer por silenciar este alento!
Seth baixou seus olhos.
“Para que me chamaste?” – perguntou.
Lúcifer lançou um longo e lento olhar para Seth.
– Quero que castigues Azael. – respondeu.
“Castigar? Mas por quê?”
– Desde quando entras em minha morada para me questionar as vontades, Guardião do Mito? Tu deves obediência! Obediência ao código, ao pacto! A mim!
“Se devo punir um de meus guardiões, mereço ao menos saber o motivo pelo qual o estou fazendo.” – afirmou Seth com solenidade.
Lúcifer caminhou até a beira do platô. Suspirou.
– Estou cansado, Seth. Tenho muito em minhas mãos e sob as minhas asas. É sempre isso, cada vez que um de vós retorna ao Inferno. “Por quê? Por quê? Por quê?”. É só o que ouço. Pelos cantos. Ao pé das montanhas... Teus guardiões transformaram meus vales em ágoras! Caminham livremente, seja na forma de lobo, seja na forma de homem... Estou farto!
Seth se aproximou do anjo.
“Somente aqui, no Abismo, podemos gozar desta forma, Lúcifer. Não podemos caminhar na terra em nossa forma humana. Não podemos fruir de nossa Humanidade quando em missão. Azael está exercitando um direito dele e é um bom cumpridor de suas obrigações. Não posso podá-lo.”
– Tu não o fazes. – replicou o anjo. – Jamais te transformas. Nem mesmo eu conheço a tua forma humana. Por quê?
“Não quero.”, respondeu Seth secamente.
Lúcifer o olhou de lado. “Não quero” não era a resposta mais adequada para um ser que não goza do livre-arbítrio. E Seth o dissera com tanta segurança, com tanta convicção. Parecia até mesmo desafiá-lo com aquelas breves palavras... Postou-se diante do lobo.
– Transforma-te. – ordenou.
“Não.”
– Transforma-te! – vociferou.
Seth deu um passo à frente.
“Não quero.” – repetiu tranqüilamente, fitando o anjo nos olhos.
Lúcifer sorriu.
– A subserviência pode ser uma grande aliada do sábio, Seth...
“E quando foi que aprendeste sobre subserviência, Lúcifer? Antes ou depois da tua arrogância te lançar neste abismo?”
– Não meças forças comigo. – respondeu o anjo irritado.
“Não me trates como se eu fosse um imbecil. Posso ter sido ingênuo um dia. Não mais. Direitos e deveres, Lúcifer.”
O anjo recuou. O lobo, afinal, não era mesmo nada ingênuo. Era imprudente alimentar aquela argumentação. Virou-se de costas e olhou por cima do ombro, sobrancelha erguida.
– Meus demônios vos invejam. Sabem de vosso poder. De vossos... privilégios.
“Direitos. E deveres. Lúcifer.”
– Dá o nome que bem quiseres, Seth, mas isso não mudará o fato de que sois uma raça distinta, única e privilegiada. Sois eternos. Fortes, belos e perfeitos! Mas, a cada vez que um Guardião do Mito é criado, cem demônios são sacrificados! Doam sua essência, sua força e seus poderes para que possais caminhar por toda terra invulneráveis. Para que possais falar a toda fera, a todo ser vivente!
“Para que possamos cumprir com o propósito para o qual existimos, Lúcifer. Servir-te. Nada mais. Não servimos a nenhum outro ego que não o teu.”
Lúcifer se voltou para Seth enfurecido.
– E o que sabes sobre o ego, lobo? Preso a esta carcaça que a mim somente deve uma voz? Pois cala teus comentários inúteis e tua filosofia barata e limita-te a contemplar, daqui, a vida que invejas dos homens lá em cima, que é só para isso que serves, Seth. Para contemplar...
Seth engoliu sua fúria e aquiesceu. “Como queiras, meu Príncipe.”, afirmou quase dando as costas a Lúcifer.
– E quanto a Azael? Por que achas que te chamei aqui, insolente? O que vais fazer sobre isso?! – esbravejou o anjo.
Seth sorriu em pensamento e respondeu sem nem mesmo voltar os olhos na direção do anjo.“Se o pacto permite aos Guardiões do Mito fruir da humanidade quando no Inferno, então que assim seja. Lida com isso”. E se retirou.
“Tu o estás enlouquecendo!...”. A voz de Seth era inconfundível.
5
“Tu o estás enlouquecendo!...”. A voz de Seth era inconfundível.
Azael voltou-se para trás e ajoelhou-se, em reverência.
Seth passou por ele, tomando a dianteira e olhou por cima das costas para o guardião atrás dele.
“Vem. Vamos caminhar”, disse-lhe.
Seth passou por ele, tomando a dianteira e olhou por cima das costas para o guardião atrás dele.
“Vem. Vamos caminhar”, disse-lhe.
Atravessaram vales e vales até as regiões mais distantes do Abismo, correndo livremente em direção às fronteiras que separavam o Inferno da terra. Um vasto descampado de folhas secas e árvores belas e suntuosas se abriu diante deles. Sentaram-se sob uma delas para admirar a noite.
Azael olhou para o próprio peito, fitando o pesado medalhão que pendia em seu pescoço.
“Eu odeio este lugar.”
“Eu odeio este lugar.”
“Não é este lugar que odeias, Azael, é o que ele representa."
Azael suspirou. O lobo negro sorriu.
“Lúcifer não mentiu...”, afirmou.
“Não mentiu?”, indagou Azael com alguma curiosidade.
“Disse-me que tu divagavas sobre questões existenciais. Queria que eu o punisse por isso!”, respondeu Seth em meio a um sorriso. “É um atormentado aquele anjo!”
Azael mostrou as presas. “Lúcifer sabe o que significa tomar o fruto nas mãos e experimentá-lo.", respondeu, "Ele conhece a história, não quer correr o risco de plantar no Inferno a mesma árvore em que um dia ele se enroscou para que pudesse levar o homem à que... Seth? Seth?”
Seth, contudo, não respondeu. Olhou em volta. Algo havia desviado por completo a sua atenção. Seus pêlos se eriçaram. Um calafrio desceu de sua nuca até se perder na ponta de sua cauda. Uma estranha brisa cortou a noite. Uma brisa que contava histórias...
De repente, ambos os lobos estavam de prontidão...
De repente, ambos os lobos estavam de prontidão...
Azael encarou Seth. “Preciso voltar...”, disse-lhe o lobo albino, agora completamente esquecido de sua conversa de instantes atrás. Sua voz havia mudado. Era agora a voz de um demônio. Um demônio com a força de cem demônios... “Sim.... Apressa-te, Azael.”, exclamou Seth, “Apressa-te!”
6
Noite. O monarca sussurrou alguma coisa na orelha de Século e sorriu para Anatole. Então, se voltou para Karr. – Acompanha-os até a fronteira. Já me certifiquei de que a partir daquele ponto eles tenham nova escolta. – ordenou.
O lobo chacoalhou a cabeça negativamente.
“Não posso deixá-lo, meu senhor.”
– Faz o que mando, Karr.
“Não vou deixá-lo, meu senhor.”
– Não tens escolha, Guardião. Faz o que mando! Além do mais, é minha noite de núpcias! Achas mesmo que te quero por perto?
“Não gosto do cheiro de tua nova esposa, meu senhor.”
– Não terás de dormir com ela, Karr. Agora, faz o que mando!
O lobo rosnou, rosnou e rosnou. Abria a bocarra expondo as presas e salivando como se estivesse faminto. Os pêlos de seu dorso estavam tão eriçados quanto as costas de um porco espinho. Andava de um lado para o outro, agitado, transtornado, furioso. O pequeno Anatole o olhava apavorado. Sequer entendia sobre o que falavam. Esperara os vinte dias, como o pai ordenou. Curou sua ferida. E fora finalmente convocado, acreditava, para tomar conhecimento da natureza de seu trabalho. No entanto, até o momento, nada de trabalho. Apenas as lamúrias de uma fera que parecia querer devorá-lo.
– São cinco dias de caminhada até as fronteiras. – disse o Khan. – Dois a cavalo. Um, em se tratando de Século. Tu estarás de volta em um dia e meio, Karr. Não há com o que te preocupares.
“Não posso.”
O monarca não lhe deu atenção.
– Anatole! – chamou pelo menino. – Monta! – exclamou, apontando para Século. O menino abriu um largo sorriso. Subiu na anca do animal com a destreza de um verdadeiro huno. O monarca se aproximou do menino e tirou do pescoço o medalhão que carregava consigo. Ofereceu-o ao garoto. “O que estás fazendo?!”, perguntou Karr de maneira exasperada. “Enlouqueceste?!”
– Século está levando uma mensagem minha até Avarayr, Anatole, na Armênia. – disse ao menino, sem se importar com os acessos do lobo atrás dele. E ao seu lado. E à sua frente...
– E queres que eu me certifique de que a mensagem será entregue! – respondeu Anatole entusiasmado.
– Tu és a mensagem, Anatole. – respondeu Átila, sorrindo e estendendo ao menino seu medalhão. – Toma. Usa isso. Não o tires do pescoço em hipótese alguma. É para tua proteção. – e se voltou para Karr. – Vai com eles. Até a fronteira. E volta logo.
“Senhor... Teu medalhão. És um Mista, não um Patrono! Tua eternidade depende dessa jóia! Sem ela estás...”
– ...Vulnerável? Ora, Karr, a espada de Marte está comigo! – exclamou, zombando de si mesmo. – Te esqueces de quem sou? Senhor de Arqueiros e Filho do Céu! A estrela cai, a terra treme... Eu sou o martelo do mundo! E a erva não cresce mais...
“...por onde o teu cavalo houver passado... Sim, meu Khan, como quiseres. Como quiseres.”, concluiu vencido, o guardião.
Partiram. No céu, as estrelas cintilavam. O monarca olhou para o alto, fechou os olhos e inflou os pulmões como há muito tempo não se deixava fazer. Queria sentir o cheiro da noite e das coisas da noite. Ao voltar seus olhos para a terra, todos se haviam ido. Já não havia mais qualquer sinal deles. “O tipo de trabalho que faz de bastardos como eu, homens como tu.”, lembrou-se das palavras do fedelho. Sorriu. Os Patronos acolheriam Anatole e o educariam para ser um deles. Cumprira sua parte para com a Ordem. Voltou-se na direção do palácio e franziu o cenho. “Hora de cuidar da nova esposa.”, pensou. “Ildico... Hoje sou mais teu do que jamais fui de mim mesmo...”
7
O Guardião do Mito abria seu próprio caminho. Atrás dele o andaluz, embora veloz, fazia esforço para lhe acompanhar a marcha. Cortavam a noite como se fossem o vento. O menino se agarrava à crina do animal com tamanha força que suas mãos sangravam. Sua pressa não era a pressa de Karr, cuja mente não conseguia deixar de pensar na inconseqüência dos atos de seu mestre. Primeiro pede a ele que escolte o menino até a fronteira. Depois, entrega ao menino seu medalhão. “Irresponsável!”, dizia o guardião em silêncio. “Irresponsável!”.
A mata, densa e fechada, se erguia como um muro entre eles e a urgência da viagem. Para o Guardião do Mito, não era tão importante chegar ao destino quanto o era retornar ao ponto de onde partira. Corria. Como o mensageiro que traz más notícias. Como um presságio de mau agouro. Às cegas. A lua sumira entre as nuvens...
Anatole rezava em silêncio. Queria pedir ao lobo que diminuísse a marcha. Estava assustado. Na verdade, apavorado. Suas mãos queriam ceder. Doíam demais. O ferimento de sua perna latejava. Não agüentaria por muito mais tempo. Sentiu as lágrimas encherem seus pequenos olhos. E, antes que percebesse, estava chorando. Fungava em silêncio. Pedia para seu irmão que lhe protegesse. Que, de onde estivesse, não permitisse que o som de seu pranto chegasse aos ouvidos daquela fera ensandecida. E, de repente, como que se lhe houvessem escutado às preces, Século começou a diminuir a velocidade...
Gradativamente...
Diminuindo...
Diminuindo...
Até parar.
Anatole olhou em volta procurando pelo guardião.
– Karr! Karr!
Silêncio.
Século ofegava. Bufava. Expelia o ar de seus pulmões entre urros. Sacudia a enorme cabeça para cima e para baixo, batendo os cascos contra o solo de maneira inquieta.
– Karr!
Nada. Teria sido abandonado? Teria, o guardião, desobedecido seu mestre e o deixado ali? No meio da noite? Sozinho? Olhou para as mãos. Sangravam. Tentou rasgar um pedaço de sua túnica, no intuito de enrolar o ferimento e estancar o sangue, mas não conseguiu. Suas mãos não estavam firmes o suficiente, fortes o suficiente. Sequer atendiam aos seus comandos!
KRAKKK.
Olhou de súbito para trás. Nada.
SHHHHH........ Ouviu atrás de sua orelha.
“Karr...”, repetiu em silêncio, “Por favor...”
Apertou o medalhão entre os dedos. O sangue escorria de sua mão. Pingava fresco no solo.
HAHHHHHHH......
Um sussurro. O corpo do menino se arrepiou. Sua nuca estava gelada.
– Tem o sabor dos fortes, este aqui...
A voz era grave, distorcida e desconexa. Não era a voz de um homem ou de uma fera. Um som assustador que se fazia entender por proferir outros sons que, juntos, continham sentido, mas não natureza... “Karr...”, repetia em pensamento, “Onde estás... Por favor...”
– A seiva dos poderosos...
Outra voz. Tão inumana quanto a primeira.
– É tão só e tão pequeno...
E mais outra...
– KKKK... E viaja sozinho...
E mais outra...
O choro. Precisava engolir o choro.
Século começou a relinchar, arfar e trotar em torno de si mesmo.
Sacudia a cabeça e dava coices no ar.
“Usa isso. Não o tires do pescoço em hipótese alguma. É para tua proteção.”, lembrou-se. Ergueu o medalhão para o nada.
– KKKKK... Carrega o símbolo da Ordem... KKKK.... Seiva poderosa!
– Aquieta! Onde viaja um membro da Ordem, viaja um Guardião do Mit...
SLAAASHHHH.
Uma cabeça passou voando pelos olhos apavorados de Anatole, bateu secamente contra o chão e rolou até o pé de uma árvore. O garoto soluçou de susto e o espasmo o levou a perder o equilíbrio. Tombou de lado no chão. A queda abriu um corte em sua testa. Ele ainda fez menção de tocar o ferimento ao mesmo tempo em que jogou seu corpo para o lado tentando rolar, mas antes que pudesse mover qualquer músculo, o guardião já estava sobre ele, bocarra aberta, salivando em seu rosto... “Não te mexas. Ainda há mais quatro deles aqui...”, ouviu em sua mente a voz austera do lobo. O menino acenou positivamente sem dizer qualquer coisa. O guardião se colocou à frente de Anatole. Diante deles, quatro figuras meio humanas meio lobos, avançavam contra ambos.
– O q... q... que... é... iss... isso...?!
Anatole não acreditava nos seus olhos.
“Proscritos.”, respondeu o guardião.
– KKKK... Um a menos para dividir a carne... KKK... Agradecemos tua oferta, Guardião do Mito... – disse a fera, apontando em direção ao corpo sem cabeça jogado na relva para, em seguida, avançar contra o lobo e o menino.
O guardião ergueu-se sobre as patas traseiras e lançou-se sobre aquelas aberrações com a mesma violência com que estas se lançaram contra ele. A velocidade de seu ataque fora tamanha que Anatole jamais teve chance de entender o que houve. A bocarra separou do pescoço a cabeça de um deles e, usando o corpo do monstro decapitado como arrimo, o guardião se lançou sobre o segundo. Enterrou a pata em seu peito, atravessando-o, e puxou de volta, consigo, suas vísceras. Em seguida, girou por sobre as próprias costas e, num golpe certeiro e violento de suas garras, separou de uma só vez cabeça e pescoço daquele monstro. O terceiro tentou fugir, mas, antes que pudesse avançar, o guardião abocanhou sua perna, arrancando-a num só golpe. A fera tombou sob Século e este tratou de lhe esmagar a cabeça sob o casco.
O lobo olhou em volta e inspirou o ar da noite por um instante. Sua pelagem branca estava coberta de sangue. Em sua bocarra, preso em seus dentes enormes, pedaços e mais pedaços de carne e vísceras e músculos e pele... Voltou-se num rápido movimento para a direção de Anatole e então alçou vôo por sobre o menino. Anatole fechou os olhos, se encolheu e ouviu atrás de si ao baque surdo, um grunhido desesperado e então mais nada. Abriu os olhos. Voltou-se para trás. O lobo terminava de desmembrar a fera e se refestelava nos restos de carne e sangue espalhados por todo lugar. O menino se curvou sobre o próprio ventre e levou a mão à boca. Não conseguiu segurar... Vomitou. E ouviu atrás de si o uivo. Longo e apaixonado.
Ergueu os olhos entre espasmos na direção do guardião.
– Obrigado... – soluçou as palavras.
O lobo não respondeu. Caminhou até Século, se ergueu sobre as patas traseiras alcançando uma manta. Tomando o pano de lã entre os dentes, levou-o até o menino.
– Eu achei que me havias deixado... Que me havias abandonado.
O lobo voltou mais uma vez até Século sem dizer nada. Rasgou de sob a sela do cavalo um pedaço de uma delicada peça de linho que descansava entre o manto de lã e a sela, e o prendeu entre os dentes. Rasgou-o então em duas tiras e as levou até o menino.
“Para tuas mãos.”, Anatole ouviu em sua mente. “Não é saudável sangrar neste lugar. Podes atrair outros como esses aqui...”. A voz do lobo. Só então se deu conta de que nunca havia escutado a voz de Karr! “Podes montar?”
– Acho que sim...
O guardião se aproximou do menino. De repente passou o focinho por todo corpo do garoto, cheirando-o, fungando em todas as suas partes.
– O que estás fazendo?! – perguntou Anatole, impacientemente.
“Procurando ferimentos.”
– Não estou ferido!
“Tua testa está sangrando, menino!”
– Anatole! Meu nome é Anatole! E minha testa não estaria sangrando se tu não houvesses demorado tanto a aparecer!
O lobo encarou o garoto. Presas à vista. Hálito podre.
“Foi teu despreparo que te derrubou daquele cavalo. Não eu. Agora, dorme um pouco.”, disse, caminhando na direção de Século. “Não estás em condição de viajar.”
Anatole olhou em volta, para as carcaças espalhadas.
– E quanto a estas... coisas?
“Não te preocupes. Estou aqui. Nada irá te molestar o sono, Anatole.”
O lobo sentou-se diante do cavalo, de costas para o garoto.
Anatole se recolheu dentro da manta, abraçando o próprio corpo.
– Eu pensei que precisavas regressar até amanhã à noite, Karr. Não foi o que meu pai te ordenou fazer? Não foi por isso que marchávamos tão rápido?
O lobo olhou para trás, por cima das costas.
“Teu pai está morto, Anatole. Sinto muito.”
O menino pareceu não compreender...
– Morto? Como... Mas...
O lobo voltou-se para o menino.
“Foi morto pela esposa. Ildico. Esta noite.”
Anatole abraçou os joelhos e se deixou chorar. Chorava como a criança que era. Órfão. Estava órfão.
– Não... Por quê? Por quê, Karr? Por que não voltaste para protegê-lo? Por quê...
“Karr voltou, Anatole. Mas não a tempo.”
O menino ergueu os olhos...
“Karr voltou...”, repetiu em pensamento.
E se levantou.
“...voltou...”
Ajoelhou-se diante do lobo e estendeu a mão para tocá-lo.
“Voltou.”
– Quem és?... – perguntou incrédulo.
O lobo baixou a cabeça, como que lhe prestando honras.
"Azael", disse. "Meu nome é Azael".
(continua...........)
(continua...........)
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